25 março, 2006

Corpo e Sangue - parte VIII

07 de janeiro - Ano 201 d.v.C.

Cadeia de Montanhas
Procimidades da província de Florença


"Encontrei Tulio em sua cama, aparentemente transtornado. Freqüentemente ele tem surtos desse tipo, mas dessa vez ele havia usado a sala. Havia tido uma premonição, eu sabia. E como ele sofria toda vez que isso acontecia. Embora já não exista mais dano físico, sua psiquê se abala completamente.

_ Tulio!

Abracei-o, mas ele nem sentiu meu toque. Nem me ouviu, ou, ao menos, não reagiu a nenhum estímulo. Tentei deitá-lo, mas ele teve um ataque, achei que haveria outra transformação. Não houve, e ele se entregou às lágrimas, agarrando-se ao travesseiro. Fiquei ao seu lado.

Passou-se meia hora até que ele finalmente se acalmasse, deixando os lençóis vermelhos com o sangue que escorrera dos seus olhos em forma de lágrimas. Eu estava sentado na cama, e ele arrastou-se dolorosamente para o meu colo. Cortei meu próprio pulso e dei-lhe meu sangue, como fazia sempre que Túlio precisava de vitae mais forte do que o fino sangue mortal. Certamente ele se sentiria mais seguro agora, e falaria comigo.

_ Ele não tem culpa - disse Tulio, afastando meu pulso.

Depois, saiu correndo pelo corredor central, como se tivesse se esquecido de alguma coisa. Afoito, ele entrou na salão das artes. Eu sabia o que ele ia fazer, e sabia o que eu tinha de fazer. Minha penitência pelos séculos de mortes e assassinatos estava sendo paga através daquele garoto. Encontrara nele algo que nunca havia sentido enquanto esse monstro no qual havia me transformado. Deus, humanidade... não me importo com o rótulo. Sei apenas que esse monstro interno que guardo nunca mais irá me dominar. Então, eu entrei na sala.

E lá estava ele, com o violino na mão, sentado à frente de uma poltrona. Na sala havia aquarela, telas e papéis antigos. Um piano e uma lareira, e um sofá grande também. A biblioteca ficava em uma sala ao lado. Sentei-me na poltrona que ele mentalmente me indicava, e rapidamente ele começou a tocar. Já sabia o que ia acontecer, ele iria me hipnotizar, e eu teria acesso a todas as suas visões.

Algo me fez estranhar. O que realmente me tinha feito abandonar toda a minha vida anterior e seguir a simplicidade daquele garoto fora todo o sofrimento que ele guardava só para ele, e nunca reclamara. Quando hipnotizava-me, era porque eu pedia, quase ordenava; queria que entendesse que poderia dividir toda aquela dor comigo. Ele sempre hesitava, sempre perguntava diversas vezes se havia mesmo tal necessidade.

E, hoje, dessa vez, ele não disse nada. Não se opôs àquilo. Apenas tocou seu violino, criando uma atmosfera propícia ao acontecimento que se seguiria. Então eu entrei em seu sonho.

Túlio me passara todas as visões. Uma cena surreal e estranha, que parecia haver sido criada por ele e um menino que o acompanhava. A presença daquela criança, pálida como a lua mas com os olhos tão negros que pareciam conter toda a escuridão, me incomodava. Era uma presença tão maligna, mesmo no sonho... Túlio, contudo, parecia ainda mais sensível a tudo.

_ Não acabou ainda...

Eu entendia que não se tratava de uma premonição, mas sim de um sonho. Como em uma tela de cinema em três dimensões, eu via todos os passos dos dois garotos no sonho de Túlio. Ele evitava que eu sentisse o que acontecia, e sei que ele possui poder para tanto. E, mesmo assim, a presença do outro garoto chegara até mim. Túlio disse-me que ainda não havia terminado, então agora haveria de me mostrar a própria premonição. Eu vi o mesmo garoto, antes de entrar em transe. Acho que ele o havia visto também, antes de se transformar, o que foi muito estranho.

Desta vez, as cenas eram piores. Não pareciam controladas pela mente de Túlio e revelara um lugar que nós dois conhecíamos bem. Túlio, talvez, bem mais do que eu. Fiquei de sobressalto com aquilo, pensando temeroso se os Tremere tentaria, depois de tanto tempo, tomar Túlio de volta.

A visão se desfaz; enfim, acabou. Um enorme alívio toma conta de meu corpo. Percebo que estou aterrorizado também.

_ Desenha pra mim a parte de Viena. – veio a voz de Túlio a me pedir, ainda cabisbaixo.

_ Aquela construção é mesmo a Capela?

_ É. Eu avisei eles. Desenha pra mim a parte de Viena.

_ Está tudo bem, Tulio?

Tulio começou a chorar novamente. Levanta-se de onde está e me abraça.

_ Desculpa... eu não queria... Apeiron...

Eu afagava seus cabelos; sentia que aquela visão não havia sido como as outras. Havia algo de poderoso nela, algo realmente importante. É difícil acreditar que vampiros tinham coração, no sentido metafórico; e Túlio tinha. Chegava a ser cômico, se não fosse extremamente trágico e piegas.

_ Não diga isso, Túlio. Eu pedi por isso. – tentei confortá-lo. - Quantos quadros você quer?

_ O máximo possível para que tenham certeza.


_ Você vai entregar pra eles? Para os Tremere? Para os mesmos que destruíram seu antigo clã, que te enterraram com um tirano?

Ele se manteve inerte. Depois levantou-se do meu colo e se sentou no piano e começou a tocar uma música alegre de Bach. Não se encaixava no contexto, mas deveria ser esse mesmo o motivo, quebrar o clima tenso e desagradável. Eu comecei a pintar os quadros, com a aquarela.

_ Se eu tenho que falar ou não, não sou eu quem decide. Se não tivesse que ser dito, eu não iria descobrir. Só me resta usar o tempo que tenho melhor jeito. – Túlio falava mecanicamente, como se o piano pudesse ouvi-lo.

Era um garoto estranho. Aquelas palavras de filosofia profunda nunca seriam levadas a sério com aquela música e aquele tom de voz infantil que ele empregava. Enquanto eu pintava ele tocava, como se desse algo em troca pelo meu trabalho. Em uma hora eu acabei vinte aquarelas com imagens das premonições de Túlio. Penduramos em varais para secar. Ele agradeceu e me contou do encontro que havia marcado para o outro dia. Senti vontade de repreendê-lo, mas não o fiz, embora ele tenha lido no meu olhar a intenção.

_ Vamos pra cidade? Eu sorri para ele.

_ Quer sair, Tulio? Que ótimo!

Ele sorriu também e pegou a carteira correndo. Estava empolgado, acredito que apenas para corresponder ao meu sorriso. Mesmo assim, saímos da fortaleza e fomos em direção aos palazzos brilhantes de Florença."

Apeiron Phobbos
Ancião Toreador

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